27.11.06

Ojos de Brujo


O nome dele era Alan...sujeito engraçado...tao magro que o avental de garçon dava duas voltas em sua cintura...
Era Francês...de Paris porém nao apoiava as idéias xenófobas e nacionalistas, as quais "cegavam" sua geraçao...sempre comentava: "Essa juventude hipócrita e desmemoriada...colonizar a África tudo bem...roubar suas pedras preciosas...acabar com sua cultura e escravizar sua gente foi muito bom...e agora?!Agora nada...nao aprendemos nada com os crimes que cometemos...cometemos crimes ainda piores como a discriminaçao contra as próprias raças que um dia deixamos na merda..."
Sim, Alan era um típico jovem europeu politizado, inteligente e muito sensìvel...sensibilidade essa que era motivo de chacota entre os - usando um eufemismo agradável para esse tipo de pessoa – mais “ignorantes”...enfim, nem na Europa estamos livres dessa “raça” totalmente dispensável...
Fomos apresentados rapidamente...afinal, ele trabalhava no mesmo bar em que resolvi mostrar meus dotes de “Camarera”...
Fazíamos de tudo...podíamos um dia estar servindo Duques e Duquesas Espanhóis e ganhar 10 euros de gorgeta e, no outro dia, estar limpando banheiros sujos de merda e nao ganhar nada...
Era um trabalho de extremos assim como a vida que estávamos levando...
Em um desses dias, Alan e eu ficamos encarregados de fechar o bar...deveria ser perto das 2 da madrugada quando escutamos uma cançao com ritmos tribais incríveis...o som vinha dos “Jardines de Murillo”...estava abafado entre as inúmeras laranjeiras, o que deixava o momento muito mais bucólico e surpreendente...
A cançao era triste...muito triste; entretanto, nos tocava de uma maneira impossível de traduzir...era uma mistura estranha de sentimentos...instigava nossa emoçao a ponto de esquecermos tudo e segui-la sem pensar em nada, a nao ser na idéia vaga e intensa do indescritível...
Cruzamos algumas “glorietas” e fontes mouras na escuridao até chegarmos a uma clareira onde a imagem era nítida: Uma mulher arábe vestia seus trajes típicos...uma burca deixava apenas seus olhos negros, penetrantes e sofridos a mostra...por ironia, ela dançava o flamenco em câmera lenta e cantarolava um gemido que vinha diretamente do coraçao...
Como perfeito complemento ao gemido, escutávamos o tom seco de uma guitarra escondida entre as sombras das árvores e as maos rápidas e calejadas de um senhor que a acompanhava de perto...era seu par...seu protetor mouro...
A imagem era absurdamente cênica...pronta para ser congelada...ou nao, enfim...a verdade é que permanecemos paralizados, observando e sentindo a magia do momento...
Alguns dias depois, ainda anestesiados e, talvez por ambos estarem dando os primeiros passos na arte da fotografia, nos perguntamos se momentos indescritíveis como aquele poderiam realmente ser congelados...
A conclusao era óbvia...apenas imagens podem ser congeladas...sensaçoes nunca...
Porém, apesar da obviedade da pregunta, foram apartir dessas entrelinhas que chegamos um pouco mais perto do verdadeiro segredo da arte otográfica: tentar transmitir em uma imagem congelada o máximo de sensaçoes possíveis...
Uma fotografia pode transplantar e “dizer” centenas de vezes mais do que milhares de linhas de um texto...
Alan e eu, durante o tempo que passamos juntos, trocamos poucas palavras e muitas imagens...ele me mostrou as cançoes intensas de um grupo chamado “Ojos de Brujo”...e eu lhe mostrei uma exposiçao de fotos do Marrocos...
Atualmente, encontro inspiraçao para bater fotos escutando essas cançoes e Alan...bom, Alan viajou para o Marrocos para tentar “capturar” alguns verdadeiros “Ojos de Brujos”...Qualquer semelhança entre imagens e sons textuais nao é pura imaginaçao...tínhamos muito em comum...