15.9.06

A gota d'água


Gotas d'água...apenas gotas...a Medéia Grega, a Eva Cristã e a Joana do Candomblé...as indesejáveis e temidas mulheres pecadoras, representantes dos mitos da natureza continuam a combater a figura bíblica "perfeita" de Maria...àquela a qual a igreja define como a personificação de todas as "virtudes" que deveriam ser seguidas: castidade, submissão, alienação e indiferença...
Medéia é a "bárbara" mal vista que possuia poderes mágicos sobre ervas e raízes e que por vingança mata os próprios filhos...Eva é aquela, nascida de uma costela dobrada de um "homem superior" e portanto considerada um animal imperfeito que vai enganar sempre por possuir uma tendência natural pelo pecado...finalmente chegamos à Joana do Morro, mulher do povo, conhecedora dos rituais de Candomblé e figura transportada por Chico Buarque, desde a tragédia grega até a tragédia urbana, nossa Medéia contemporânea..essa gota d'água pela qual me afoguei em sentimentos...todos pulsantes...rentes à epiderme eriçada que traduzia para o cérebro apenas sinapses que nada diziam...o significado literal apenas o coração podia compreender...excitação...emoção...magia...medo...catarse...nada racional...a real banalização de tudo que é trágico na essência da mulher...o trágico original assim como o pecado original pertencem ao "sexo frágil"...
Que Medéia!Que Joana!Que força resgatada...escancarada desse "sexo frágil"!
O que parece acontecer nessa Gota d’água é um efeito de trivialização e de familiarização da tragédia grega: o que é nobre torna-se vulgar; toda a pompa da tragédia grega é substituída pelo comum; a linguagem, embora em versos, é muitas vezes chula; reis e príncipes dão lugar a pessoas do povo, “simples mortais” (sambistas, lavadeiras, biscateiros, gigolôs, fofoqueiros); os deuses da mitologia grega são "misturados" com as divindades do candomblé; as magias de Medéia são substituídas pelos “feitiços” de Joana:

"O pai e a filha vão colher a tempestade
A ira dos centauros e de pomba-gira
levará seus corpos a crepitar na pira
e suas almas a vagar na eternidade
os dois vão pagar o resgate dos meus ais
para tanto invoco o testemunho de Deus,
a justiça de Têmis e a bênção dos céus,
os cavalos de São Jorge e seus marechais,
Hécate, feiticeira das encruzilhadas,
padroeira da magia, deusa-demônia,
falange de Ogum,
sintagmas de Macedônia(...)
Eu quero ver sua vida passada a limpo,
Creonte. Conto co’a Virgem e o Padre Eterno,
todos os santos,
anjos do céu e do inferno,
eu conto com todos os orixás do Olimpo!"
(BUARQUE, PONTES, 2002, p. 101)

Será que através dos aspectos formais tanto do texto quanto da encenação, Aristóteles consideraria essa Gota d'água como uma Tragédia típica?
Acho que a maioria das pessoas que estavam sentadas...em cadeiras ou não...mandariam essas normativas aristotélicas para bem longe...
Naquele momento...a única "verdade" era a da sensibilidade...da mistura de corpos e de ritmos, todos juntos, concordando ou não, mas sempre "segurando nos braços" a personificação do Karma de todas as mulheres: a figura sofrida, desamparada, discriminada, carismática porém de uma força vingativa que causa medo e náusea da protagonista Joana.
Me deparo com uma estranha sensação de repúdia e, ao mesmo tempo, de entendimento e identificação com a personagem...fica claro que em nosso interior habitam todos os crimes, solidariedades e amores possíveis...a tragicidade está sempre lá...a única diferença é a passagem da "fantasia" para o ato...
Essa violência que recai sobre Medéia e portanto sobre Joana ultrapassa os signos sociais e se abate sobre a interioridade de sua feminilidade, sua sexualidade e seus sonhos. Como se fossem signos do universo feminino o qual, diferentemente do universo masculino, é todo construído "para dentro", assim como a representação física do nosso próprio órgão sexual.
Essa mulher vai aos extremos para ser acreditada, sua vingança irá além do consenso humano de "normalidade" (apesar de o mesmo estar em um momento bastante contraditório sobre seu "fiel" sentido)...será uma resposta carente de "razão" porém eficaz na medida em que atribui sentido e credibilidade ao comportamento feminino: até onde a mulher é capaz de chegar para defender sua honra e seus sentimentos...a "fantasia" tornar-se-á ação pela via passional....via essa que pertence na sua totalidade à natureza da mulher...Medéia, através da Joana de Chico Buarque, "canta" desde o ínicio o que foi a sua "perdição" e, consequentemente, será sua "salvação" através da vingança:

Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta

Olha a veia que salta

Olha a gota que falta pro desfecho da festa

Por favor

Deixe em paz meu coração

Que ele é um pote até aqui de mágoa

E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água

Deixe em paz meu coração

Que ele é um pote até aqui de mágoa

E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água

Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta

Olha a veia que salta

Olha a gota que falta pro desfecho da festa

Por favor

Deixe em paz meu coração

Que ele é um pote até aqui de mágoa

E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água

Pode ser a gota d'água